Algumas vezes me perguntam o que deve ser feito para que as crianças se interessem por leitura. Não sei bem o que me responder para estes pais aflitos. Apenas devolvo a pergunta com outras do tipo: tem livros na sua casa? Já leu junto com as suas crianças? Já foram passear em uma livraria? Já mostrou para seu filho como tomar livros emprestados na biblioteca da sua cidade?

Penso que todo o escritor em algum momento seja convidado a dar este tipo de conselho para adultos preocupados com a dificuldade de colocar livros em pequenas mãos mais afeitas a mouses e controles de vídeo games. Eu não sou um teórico da literatura. Embora tenha minha incursão dentro da Academia com um mestrado em Letras, acho que minha formação é mais por prazer do que por solidez de conhecimento. Com esta vivência nas pesquisas universitárias, não fiz mais do que reforçar o extremo prazer que tenho de conviver com livros, leituras, histórias contadas, lidas ou imaginadas. Se literatura é algo diferente de prazer, não me contem a resposta certa. Quero ficar com esta suposta ilusão de que um momento de recolhimento junto a um bom livro é tão prazeroso quanto um bom prato de comida… Quanto uma conversa com um amigo… Quanto um beijo em quem se ama… E por aí vai.

Ler é prazer. “E como convencer a garotada disso?”, me pergunta um pai preocupado.

Busco uma resposta sincera no meu bauzinho de memórias. Quando criança uma marca de iogurte presenteava os consumidores com ingressos para filmes dos Trapalhões. Para quem cresceu na década de 1980, era o máximo. Minha mãe sempre me levava para ver os filmes, mas colocava algumas condições, uma delas era a de aproveitar o horário do estacionamento que ela pagava para deixar o carro. É que enquanto eu ficava no cinema, ela fazia um curso em uma escola profissionalizante ao lado. E por uma ironia que só muitos anos depois eu compreenderia o benefício, o horário do estacionamento e do curso nunca batia com o início da sessão. Portanto, eu era deixado no cinema às 15h, por exemplo, sendo que o filme havia começado 14h. Mas tinha que sair as 17, exatamente no meio da próxima sessão. Então eu precisava montar o filme na minha cabeça, assistindo Os Trapalhões na Serra Pelada” ou “Os Saltimbanco Trapalhões” do meio para fim e – na próxima sessão – do começo até o meio. Aí então minha mãe me buscava na escuridão do cinema, com pressa para não pagar uma hora a mais de estacionamento. Para um garoto obediente e morador de um bairro distante, ir ao cinema durante a semana era um prazer tão grande que eu nem ousava reclamar. O que ficou de lição para mim foi a possibilidade de “desmontar” e “recontar” o filme na minha imaginação. Uma história acontece muito mais na cabeça de quem a assiste do que exatamente na tela ou nas páginas de um livro. Assistindo ao filme desta maneira não-linear, eu passava a me envolver com a história e me obrigava a recontá-la para mim mesmo, decifrando alguns códigos da criação. Eu era mais do que um espectador, assumia uma posição ativa, contava junto a história.

Ainda criança, nesta mesma época, tenho a lembrança de ver muito jornal espalhado pela casa. Meus pais gostavam de ler as notícias do dia logo após o almoço. Então, para ter a companhia deles, minha estratégia (mesmo que inconsciente) de criança era me sentar ao lado e ler junto. Mesmo antes de ser alfabetizado, procurava os quadrinhos dos jornais e a letras grandes dos títulos para conseguir entender sobre o que eles falavam. Pouco a pouco eu ganhava um espaço maior naquela sala a partir da necessidade de integração com o ritmo familiar que a leitura me dava. E neste ponto meus pais foram muito inteligentes, já que valorizavam cada palavra que eu conseguia entender no jornal, conversando sobre o contexto do que eu estava lendo. No fim do dia era comum meu pai chegar em casa com vários gibis para a minha diversão. Algumas tardes minha mãe me levava na gibiteca de Curitiba, uma espécie de biblioteca com histórias em quadrinhos. Minha formação de leitor passou pela narrativa visual, mas não parou por aí. Do cinema para os gibis e então para os livros. Uma trajetória feliz, que lembro com muito carinho.

Penso hoje que me fiz leitor porque a leitura nunca foi uma obrigação, mas sim uma atividade tão divertida quanto qualquer outra que uma criança gosta de fazer. Nunca existiu uma separação entre o momento da leitura e a hora da brincadeira. Ambas atividades se integravam e se somavam. A criança que jogava bola na rua se recolhia para a leitura de um livro com o mesmo prazer. E tinha a possibilidade de conversar com os pais tanto sobre futebol quanto sobre o que estava lendo. E quando contava uma história, contava do seu jeito, jamais com o ferrenho e detestável hábito de se submeter a uma avaliação. Não existe nada mais execrável para a formação de um jovem leitor do que fazê-lo responder a um questionário sobre um livro que leu. Literatura é um direito do ser humano, jamais uma forma de ganhar nota na escola. Quando um professor acha que fazendo uma avaliação sobre um livro é um bom incentivo para que o jovem leia, está apenas enganando: a si próprio e ao jovem, que irá apenas –após a prova – deixar o hábito de ler empoeirando na estante.

Um leitor é antes de mais nada um contador de histórias para si próprio. Narramos as histórias para nós mesmos. E se entendemos que temos o direito de “desmontar” e “recontar” uma narrativa de acordo com as nossas vontades, ai sim entramos de vez com o coração aberto nas ricas possibilidades da literatura. Em outubro de 2009 tive a feliz oportunidade de participar com autor palestrante na Feira de Livros do SESC. Fui  convidado para dar uma palestra sobre o meu livro “A menina do Circo”. Propus que realizássemos mais do que um bate-papo, que pudéssemos fazer com que as crianças de alguma forma fossem além do que meras espectadoras. Convidei então o bom amigo Renato Perré, que há muitos anos trabalha com teatro e arte-educação. As crianças então participaram de rodas de leitura sobre o livro. Cada ator (ou o próprio autor) lia trechos da história para os pequenos. Todos debatiam a narrativa e ao final as crianças eram convidadas a desenhar os personagens da história. Pronto os desenhos, a garotada subia em um palco de teatro de bonecos para encenar o livro a partir de sua própria visão. Eu fiquei muito feliz com o resultado. Mesmo neste mundo de tecnologia a todo o custo, internet, vídeo game, shopping centers e outras pós-modernidades, vi que o hábito de contar uma história ainda cativa uma criança. Mas, é claro, esse nosso público contou junto a história, não foram apenas espectadores passivos. Tenho a certeza de que neste dia ajudamos a consolidar o hábito da leitura em dezenas de crianças. Assim como minha mãe e meu pai fizeram lá no passado, sempre me convidando a “desmontar” e “recontar” as histórias, seja no cinema, com a sessão pega pela metade; seja na sala de casa, onde eu tentava decifrar o mundo a partir dos jornais espalhados pelo chão. Ler não deve ser uma obrigação. Ler é conquistar o direito de decifrar o mundo, direito de todos.

Luiz Andrioli

*Abaixo uma reportagem de Walrides Brevelhieri Jr. Sobre o dia da palestra lá no SESC em Curitiba.